Ensaio escrito por ANDRESSA MOURA, idealizadora deste site.
Os Diversos Conceitos de Violência: Um Ensaio sobre a Violência e os Direitos Humanos.
1 INTRODUÇÃO
A promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 10 de dezembro de 1948, representa um marco na história contemporânea da humanidade, constituindo-se como um documento normativo de alcance global voltado à proteção da dignidade humana. Embora elaborada em um contexto geopolítico específico — o pós-Segunda Guerra Mundial —, a DUDH traz “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ONU, 1948, Preâmbulo) e carrega consigo princípios universais que encontram ressonância em tradições filosóficas anteriores.
Dentre estas, destaca-se a filosofia moral e política de Immanuel Kant, especialmente sua obra À Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico (1795), na qual o autor propõe as bases de um cosmopolitismo jurídico e ético. Diante desse contexto introdutório sobre direitos, garantias e dignidade humana adentrou-se em um tema atual e relevante: a violência.
A violência institucional, urbana, cultural e suas diversas faces estão presentes desde a existência do mundo, e é um fenômeno ou dito por muitos autores como uma anomalia, dotada de complexidade e que merece reflexão.
Este ensaio propõe uma análise crítica a violência que é, historicamente, um dos elementos estruturantes das sociedades modernas, ainda que frequentemente naturalizada como fenômeno isolado ou excepcional. A partir da articulação teórica de diversos autores explorados nas aulas do mestrado como Hannah Arendt, Karl Marx, Étienne Balibar, Judith Butler, Sérgio Adorno, Luciano Oliveira e Ricky Wichum é possível perceber que a violência contemporânea se expressa tanto na sua dimensão física e ostensiva, quanto em formas sutis de controle, exclusão e precarização da vida.
Este ensaio pretende discutir o conceito de violência a partir dessas contribuições, destacando seu caráter estrutural e sistêmico, seus vínculos com as formas modernas de poder e governo e, especialmente, as implicações dessa compreensão para os contextos periféricos e desiguais, como o brasileiro.
Ao estabelecer esse paralelo, busca-se refletir sobre o alcance filosófico e político da violência, bem como sobre os desafios atuais da segurança pública para uma ação dotada de efetividade.
2 Conceito de violência e seu desenvolvimento estrutural e sistêmico
A DUDH afirma, logo em seu artigo 1º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (ONU, 1948, Art. 1). Essa concepção repousa sobre uma visão antropológica que reconhece na racionalidade e na moralidade elementos constitutivos do ser humano, alinhando-se ao pensamento kantiano, para quem o ser humano é um fim em si mesmo e não pode ser instrumentalizado.
Kant, em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, afirma: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio” (KANT, 2003, p. 57). Esse imperativo categórico funda a moralidade autônoma e o valor intrínseco da pessoa, princípios que ressoam nos direitos humanos modernos ao justificar a universalidade e a inviolabilidade da dignidade humana.
Comentadores da obra kantiana, como Norberto Bobbio, observam que “os direitos humanos não nascem todos de uma vez, nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 1992, p. 5), mas são fruto de uma evolução histórica e filosófica que encontra em Kant um dos seus marcos fundadores. Sua proposta não é apenas normativa, mas crítica, apontando para a necessidade de institucionalização dos princípios morais em estruturas jurídicas globais.
A reflexão sobre a violência como estrutura remete ao pensamento de Karl Marx e Hannah Arendt. Em Sobre a Questão Judaica, Marx (2010) evidencia como as desigualdades sociais se perpetuam mesmo após a emancipação política. A violência não é apenas aquela praticada pelo Estado, mas reside nas próprias estruturas da sociedade burguesa, que garantem a reprodução de privilégios e exclusões. Assim, para Marx, a verdadeira emancipação não ocorre através da concessão de direitos formais, mas pela transformação das relações econômicas que mantêm a dominação.
Na mesma linha crítica, Hannah Arendt (2012), em Origens do Totalitarismo, examina como a burguesia européia, em seu processo de emancipação política, instrumentalizou a violência imperialista para a conquista de novos mercados e territórios. Arendt destaca que o racismo foi o principal instrumento ideológico dessa violência colonial, ao naturalizar a inferiorização e a opressão dos povos colonizados. A autora demonstra como essa lógica violenta abriu caminho para as formas mais extremas de dominação no século XX: os regimes totalitários.
Ambos os autores nos convidam a compreender a violência não como exceção, mas como parte constitutiva da organização social e política moderna, sustentada por estruturas econômicas, ideológicas e jurídicas.
O sociólogo Sérgio Adorno (1995; 2017) aprofundou essa crítica ao analisar a violência como um fenômeno estrutural no Brasil. Ele demonstra que a violência estatal, especialmente contra jovens negros e pobres das periferias urbanas, não se trata de desvio ou falha institucional, mas de um mecanismo seletivo de controle social. A impunidade e a ausência de políticas públicas de inclusão reforçam a violência como prática cotidiana e legitimada pelo Estado e pela sociedade.
Na mesma direção, Luciano Oliveira (2011), ao reler Vigiar e Punir de Michel Foucault, sugere que o Brasil não corresponde ao modelo europeu de “sociedade disciplinar”. Para ele, trata-se antes de uma sociedade indisciplinar, na qual o poder opera não tanto pela normatização e disciplina sutis, mas pela violência direta e aberta. A prisão brasileira, por exemplo, não é um dispositivo de regeneração, mas um espaço de degradação, controle violento e abandono.
Essa reflexão é essencial para entender como, no contexto brasileiro, a violência não só persiste, como também se reinventa institucionalmente para manter a exclusão de determinados grupos, enquanto preserva os privilégios de outros.
3 CONCLUSÃO
A análise da Declaração Universal dos Direitos Humanos à luz da filosofia moral de Immanuel Kant evidencia não apenas uma afinidade conceitual entre os documentos e os ideais do filósofo, mas revela um substrato ético-filosófico profundo que sustenta a noção moderna de direitos humanos. Tanto a DUDH quanto a teoria kantiana partem da ideia de que o ser humano possui um valor absoluto, não por convenção, mas por sua natureza racional e moral. Como Kant afirma, “o ser humano e, de modo geral, todo ser racional existe como fim em si mesmo, não apenas como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade” (KANT, 2003, p. 57). Tal perspectiva fundamenta a universalidade e a inviolabilidade dos direitos proclamados em 1948, sendo a dignidade o ponto de convergência entre a razão filosófica e a norma jurídica.
Contudo, a universalização dos direitos humanos permanece um projeto em construção, permeado por tensões políticas, econômicas e culturais. A filosofia kantiana, embora idealista em sua formulação, reconhece o caráter gradual e conflituoso da história, assumindo que o progresso moral da humanidade depende do fortalecimento das instituições republicanas, da autonomia dos indivíduos e do desenvolvimento do senso cosmopolita. Nesse sentido, a proposta de uma paz perpétua baseada no direito — e não na força — conecta-se diretamente com os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos, como a ONU e a Corte Internacional de Justiça, ainda que esses instrumentos enfrentem desafios de legitimidade e eficácia.
A análise dos textos evidencia que a violência, longe de ser um fenômeno pontual ou desviante, constitui um elemento central das sociedades modernas. Ela se manifesta nas estruturas econômicas que sustentam desigualdades (Marx), nas ideologias que legitimam a dominação (Arendt), nas práticas seletivas do Estado brasileiro (Adorno, Oliveira) e nos dispositivos contemporâneos de segurança (Wichum). Além disso, impacta profundamente a constituição das subjetividades, precarizando vidas e excluindo grupos inteiros da proteção jurídica e social (Butler, Balibar).
Essa compreensão crítica da violência exige o desenvolvimento de políticas públicas que enfrentem não apenas suas expressões mais visíveis, mas sobretudo as estruturas que a produzem e reproduzem. Como defendem Balibar e Butler, é preciso construir uma política fundada na hospitalidade, na pluralidade e na justiça social, para que seja possível superar a violência como forma de gestão e exclusão.
4 REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992.
KANT, Immanuel. À paz perpétua: um projeto filosófico. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2004.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2003.
ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.un.org/pt/universal-declaration-human-rights/index.html. Acesso em: abr. 2025.
ADORNO, Sérgio. Violência na sociedade brasileira: um painel inconcluso numa democracia não consolidada. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 43, p. 97-113, 1995.
ADORNO, Sérgio. A formação do campo de pesquisa em sociologia da violência no Brasil. Primeiros Estudos, Campinas, v. 8, n. 1, p. 131-142, 2017.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
BALIBAR, Étienne. Violência e civilidade: para uma cultura política global. Tradução de Luciano Padilla. São Paulo: Editora da Unesp, 2015.
BUTLER, Judith. Violence, Mourning, and Politics. In: ______. Precarious Life: The Powers of Mourning and Violence. London: Verso, 2004. p. 19-49.
MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Luciano. Relendo ‘Vigiar e Punir’. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 309-338, 2011.
WICHUM, Ricky. Security as Dispositif: Michel Foucault in the Field of Security. In: ______. The Toolbox of Security: Interdisciplinary Perspectives on Security Studies. Freiburg: University of Freiburg, 2015. p. 164-171.

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