Ensaio escrito por ANDRESSA MOURA, idealizadora deste site.

Punir, Conter, Silenciar: A Violência de Estado contra Mulheres na Segurança Pública Brasileira.

  1. Introdução

A violência estatal no Brasil se manifesta de forma brutal e seletiva, atingindo com mais intensidade populações historicamente marginalizadas. Dentro desse cenário, o sistema de justiça criminal funciona como mecanismo de exclusão, repressão e controle social, especialmente sobre as mulheres pobres, negras e periféricas. Este ensaio propõe uma reflexão crítica sobre a atuação do Estado por meio da polícia, do sistema carcerário e das políticas de drogas, articulando os trabalhos de Sayão e Santos (2022), Grujić e Peliz (2022), Camila Nunes Dias, Gorete Duratet, Karina Argüello, Marianne Estrela e Françoise Vergès.

  1. A violência policial como fracasso ético e formativo

Segundo Sandro Cozza Sayão e Juliana Santos (2022), a formação policial brasileira é marcada por uma lógica autoritária e militarizada que desumaniza o outro e transforma o confronto em regra de atuação. Os autores defendem uma reformulação ética da prática policial a partir da alteridade, baseada na escuta, no diálogo e na superação da lógica do “inimigo interno”. A ausência dessa ética contribui para a produção cotidiana da violência, que atinge especialmente pessoas em situação de vulnerabilidade.

  1. O estado inconstitucional de coisas e o colapso carcerário

Grujić e Peliz (2022) abordam o conceito de “estado inconstitucional de coisas” para descrever a situação das penitenciárias brasileiras, caracterizadas por superlotação, ausência de direitos básicos e institucionalização da tortura. Essa degradação do sistema prisional reflete a incapacidade (ou desinteresse) do Estado em garantir a dignidade das pessoas privadas de liberdade, naturalizando a punição como política pública. A carceragem, nesse sentido, se configura como política de gestão da miséria e contenção da marginalidade.

  1. Persistência autoritária e o recrudescimento punitivo

A pesquisadora Camila Nunes Dias analisa como o sistema penal brasileiro opera a partir de uma lógica de continuidade autoritária, herdada da ditadura militar, e que se intensifica no contexto atual com políticas de encarceramento em massa. O punitivismo é reforçado por discursos de segurança que desumanizam o sujeito criminalizado, atribuindo-lhe a condição de “perigoso” e irrecuperável. Para Nunes Dias, o recrudescimento das penas e a seletividade penal revelam a manutenção de um projeto político de exclusão.

Gorete Duratet e Silvestre demonstram que a tortura, embora formalmente proibida, ainda é amplamente praticada e socialmente aceita no Brasil, especialmente contra corpos racializados e pobres. As autoras analisam como as disputas conceituais em torno da tortura ajudam a invisibilizar sua prática cotidiana, especialmente nas delegacias, presídios e nas abordagens policiais em favelas e periferias. O silêncio institucional e a impunidade contribuem para a perpetuação dessa violência.

  1. O impasse do feminismo punitivo

Françoise Vergès (2022) critica o que chama de “feminismo punitivo”, ou seja, o apelo ao Estado penal como suposta forma de proteção das mulheres. Segundo a autora, esse tipo de feminismo legitima a expansão do aparato repressivo, que atinge justamente as mulheres mais vulneráveis. Ao invés de proteger, o feminismo punitivo reforça o encarceramento e a violência institucional, sem tocar nas estruturas de desigualdade que produzem a violência de gênero. Vergès propõe um feminismo abolicionista, centrado em justiça social e reparação.

Os estudos de Argüello e Muraro (2015) e do grupo de Estrela, Silva Junior e Tannuss evidenciam como as políticas de drogas impactam de forma desproporcional as mulheres. Em sua maioria, mulheres presas por tráfico são negras, pobres e chefes de família, atuando nos níveis mais baixos da cadeia do narcotráfico. O sistema penal ignora as especificidades de gênero e vulnerabilidade social, tratando essas mulheres como traficantes perigosas, quando na verdade são vítimas de um contexto de exclusão estrutural.

  1. Conclusão

A articulação entre segurança pública, gênero e violência estatal mostra como o Estado brasileiro se utiliza de mecanismos legais e institucionais para perpetuar desigualdades históricas. A atuação policial, o sistema carcerário e as políticas de drogas não apenas falham em promover justiça, como operam como tecnologias de controle social. A superação desse cenário exige uma transformação profunda na ética da segurança pública, na crítica às formas contemporâneas de punitivismo e na construção de alternativas que garantam a dignidade de todas — especialmente das mulheres mais marginalizadas.

  1. Referências

ARGÜELLO, Karina; MURARO, Maria Clara. Las mujeres encarceladas por tráfico de drogas en Brasil: las muchas caras de la violencia contra las mujeres. Revista Crítica Penal y Poder, n. 9, 2015.

DIAS, Camila Nunes. Situação carcerária no Brasil: persistências autoritárias e recrudescimento punitivo. São Paulo: NEV/USP, 2021. Disponível em: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2021/11/2021-11_TextoNEV-RelatorioDH_CamilaNunesDias.pdf. Acesso em: 21 jul. 2025.

DURATET, Gorete M.; SILVESTRE, Gisele. Conceituações plásticas da tortura: disputas e consensos em torno dessa violência estatal. São Paulo: NEV/USP, 2023. Disponível em: https://nev.prp.usp.br/wp-content/uploads/2023/07/Conceituacoes-plasticas-da-tortura-disputas-e-consensos-em-torno-dessa-violencia-estatal.pdf. Acesso em: 21 jul. 2025.

ESTRELA, Marianne Laíla Pereira; SILVA JUNIOR, Nelson Gomes de Sant’Anna e; TANNUSS, Rebecka Wanderley. Uma guerra contra mulheres: política de drogas e criminalização feminina no Brasil. In: MACHADO, Maíra Rocha; DIAS, Camila Nunes (org.). Mulheres e tráfico de drogas: registros criminológicos-críticos. São Paulo: IBCCRIM, 2021. p. 25–48. Disponível em: https://www.ccta.ufpb.br/editoraccta/contents/titulos/direito/mulheres-e-trafico-de-drogas-registros-criminologicos-criticos. Acesso em: 21 jul. 2025.

GREEN, Linda. Fear as a way of life. Cultural Anthropology, [S.l.], v. 9, n. 2, p. 227–256, 1994. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/656354. Acesso em: 21 jul. 2025.

GRUJIĆ, Vanja; PELIZ, Melissa. Symbolic jurisprudence: the unconstitutional state of affairs in relation to the Brazilian penitentiary system. Latin American Human Rights Studies, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 164–171, 2022. Disponível em: https://revistas.ufg.br/lahrs/article/view/77984/40470. Acesso em: 20 jul. 2025.

SAYÃO, Sandro Cozza; SANTOS, Juliana Barbosa dos. Repensando a atuação e formação policial: fortalecendo o diálogo e respeitando a alteridade. Revista Derecho y Cambio Social, n. 70, 2022.

VERGÈS, Françoise. The impasse of punitive feminism. In: —. A feminist theory of violence. London: Pluto Press, 2022. p. 61–82. Disponível em: https://www.plutobooks.com/9780745345673/a-feminist-theory-of-violence/. Acesso em: 20 jul. 2025.

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